O mistério dos brinquedos antigos que está intrigando cientistas

Por Amanda Ruggeri, na BBC Future

O arqueólogo americano Gus Van Beek (1922-2012) passou duas décadas escavando a antiga cidade assíria de Tell Jemmeh, que foi habitada há cerca de 2.200 a 3.800 anos, na região que hoje corresponde ao sudoeste de Israel.

Van Beek recuperou tantos objetos que o Instituto Smithsonian, nos Estados Unidos, levou 40 anos para catalogar todos. Havia moedas, escaravelhos, amuletos e uma imensa coleção de cerâmica — tão grande que parte dela precisou ser descartada posteriormente.

Mas, para Van Beek, “entre os mais enigmáticos objetos recuperados”, o local trouxe uma descoberta: 17 pequenos discos arredondados — alguns feitos de giz, outros de pedra, mas a maioria de cacos reciclados — com dois orifícios propositais no centro.

Van Beek não foi o primeiro arqueólogo a descobrir objetos como esses. E nem o último. Eles foram encontrados em sítios arqueológicos no Japão, no Egito, na Índia e no continente americano, entre outros locais.

Três desses objetos foram encontrados na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, no mesmo local onde ficava um acampamento do Exército britânico durante a Guerra da Independência americana (1775-1783) — um deles, feito com uma moeda. E já foram encontrados, em outros lugares, objetos similares datados de 4 mil anos atrás.

Alguns arqueólogos acreditam que esses objetos fossem botões. Para outros, eram pesos de teares, cerâmica perfurada ou foram simplesmente classificados como “objetos diversos”.

Mas, para Van Beek, eles relembravam outra coisa. “Eu me lembrava de brincar, quando era criança, com um objeto similar”, observou ele.

Passe um cordão pelos orifícios, estique e relaxe o cordão e o disco irá girar. Van Beek deu aos objetos o nome que eles tinham quando ele era criança — buzzes (“zumbidos”, em inglês) — e chegou a tentar, ele próprio, criar um deles.

Outros acadêmicos já haviam suspeitado que fossem brinquedos, mas havia também os céticos. Confiar nas próprias memórias da infância e projetar nossa experiência moderna em uma sociedade distante parecia, no mínimo, um procedimento pouco acadêmico.

O mistério dos brinquedos antigos de Van Beek é apenas um dos muitos quebra-cabeças arqueológicos relacionados às brincadeiras infantis. Ele ilustra muitas das armadilhas que encontramos ao estudá-las.

Nós sabemos que as crianças brincavam e, muitas vezes, com objetos. Mas outras questões, como quais objetos elas usavam e de que forma, permanecem muito difíceis de responder.

Tão difíceis, na verdade, que inspiraram a “piada dos arqueólogos”. Um arqueólogo encontra um pequeno objeto. “O que é isto?”, ele pergunta. “Não sei”, responde outro. “Deve ser um brinquedo… ou um objeto religioso.”

A piada pode não ter graça, mas entender como as crianças brincavam é importante — até porque esse entendimento é parte de um debate que já dura décadas: o que a infância realmente significava para as gerações passadas, se é que ela tinha algum significado?

Nos anos 1960, o historiador amador francês Philippe Ariès (1914-1984) publicou a teoria de que, na maior parte da história, a mortalidade infantil era alta demais para que os pais investissem muito nos seus filhos em termos de sentimentos e recursos. Por isso, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura.

E esse tratamento se estendia às brincadeiras. Ariès escreveu que, depois da primeira infância, as crianças não tinham mais brinquedos e jogos específicos para elas. Por isso, elas brincavam com os mesmos objetos dos adultos.

Embora os acadêmicos tenham desmentido grande parte da teoria de Ariès, muitas das suas crenças ainda persistem. E os arqueólogos, particularmente os que estudam a infância, vêm apresentando opiniões diferentes. Um dos pilares da sua argumentação tem a ver com as suas descobertas sobre as brincadeiras das crianças.

“Tem se dito com muita frequência que não havia o sentimento da infância — que a infância era uma fase da vida que você precisava atravessar o mais rápido possível para chegar à idade adulta, quando você ‘existe’ por completo”, afirma Véronique Dasen, professora de Arqueologia Clássica e História da Arte da Universidade de Friburgo, na Suíça. Ela é líder do projeto Locus Ludi, apoiado pela União Europeia, que estuda jogos greco-romanos, e uma das editoras de um livro sobre brincadeiras antigas, a ser lançado em breve.

“Mas isso não é verdade”, segundo Dasen. “Existe algo especial entre as crianças e esse valor especial é revelado pelo seu prazer em brincar. E os adultos reconheceram isso.”

Um dos problemas é que, historicamente, a infância é ignorada pelos acadêmicos.

“O mundo das crianças foi excluído da pesquisa arqueológica”, escreveu a arqueóloga norueguesa Grete Lillehammer na sua obra de referência A Child is Born: The Child’s World in an Archaeological Perspective (“Nasce uma criança: o mundo infantil em perspectiva arqueológica”, em tradução livre), publicado em 1989.

Para ela, “poucos arqueólogos examinaram ou deram atenção a este tema, que dirá pensar nele como seu principal campo de interesse”.

Mas isso não significa que as crianças não fossem uma parte importante das comunidades, nem que não houvesse atividades e objetos específicos, destinados principalmente a elas. Temos até evidências etimológicas a respeito: a palavra para “criança” em grego clássico significa “alguém que brinca”.

E alguns filósofos descrevem a infância como uma etapa da vida específica, dedicada às brincadeiras.

“Platão e Aristóteles [falam] sobre a importância de brincar, como é bom para o desenvolvimento das crianças”, afirma Maria Sommer, uma das autoras do livro Care, Socialisation and Play in Ancient Attica (“Cuidados, socialização e brincadeiras na Ática antiga”, em tradução livre).

“Na verdade, eles escrevem para os pais: ‘vocês precisam deixar seus filhos brincarem’. E é muito interessante que você não entrava na escola na Grécia Antiga antes dos sete anos. Até essa idade, você era livre para brincar”, explica ela.

Mas determinar exatamente como as crianças brincavam 2 mil, 5 mil ou até 25 mil anos atrás — e quais eram os seus brinquedos — exige intrépidas pesquisas e um pouco de adivinhação bem calculada.

Questões que persistem

De um lado, a maioria dos brinquedos provavelmente era feita de materiais naturais, como madeira ou palha. Isso significa que é improvável que eles tenham sobrevivido.

Imagine bonecas feitas de canas ou jogos usando ossos de animais. Mas, mesmo com evidências arqueológicas mais duráveis, as dificuldades persistem.

Uma das indicações mais importantes empregadas pelos arqueólogos para determinar o que é um objeto e como ele é usado é o seu contexto.

Se uma xícara for encontrada em uma parte da casa onde também há pratos e colheres, por exemplo, os arqueólogos podem formular a hipótese de que ela era usada para servir ou consumir bebidas. Mas, se a mesma xícara for encontrada em um túmulo ao lado de joias e amuletos, ela pode ter sido usada para fins decorativos ou em rituais.

Mas, com os brinquedos, o contexto pode ser ainda mais incerto. As crianças brincam em toda parte, não só em áreas previamente definidas – embora possa ter havido o equivalente antigo aos salões de brincadeiras para crianças.

Só porque um objeto foi escavado em um contexto associado aos adultos, não quer dizer que ele também não fosse usado para brincar. Certos brinquedos podem ter sido objetos que também eram usados pelas crianças.

Imagine dar potes e panelas para um bebê bater. Se um arqueólogo encontrasse esses objetos daqui a 2 mil anos, ele poderia identificá-los como instrumentos de cozinha, não como objetos que uma criança com dois anos de idade passava incontáveis horas batendo alegremente.

Por outro lado, mesmo quando escavado em um contexto associado a crianças, como um túmulo infantil, isso não significa que todo objeto fosse um brinquedo. Ele pode ter sido algo de uso religioso ou cerimonial.

E, para complicar ainda mais, as culturas do passado eram muito diferentes da nossa. Tanto que a própria questão “isto era um brinquedo ou um objeto sagrado?” pode não ter virtualmente nenhum significado.

As bonecas, por exemplo. Como os buzzes de Van Beek, figurinos femininos em miniatura já foram descobertos em todo o mundo.

Escritores antigos também parecem descrever meninas brincando com objetos que podem ter correspondido às nossas bonecas modernas. Plutarco, por exemplo, lembrando-se de sua filha que morreu com dois anos de idade, conta que ela pedia à enfermeira que desse comida para seus “objetos e brinquedos”, que ela convidava para ocupar um lugar à mesa.

Um tipo específico de boneca foi encontrado em sítios arqueológicos da Grécia e Roma Antiga, em santuários religiosos ou enterrado em túmulos de meninas. Essas bonecas tinham membros articulados e detalhes elaborados, incluindo penteados da moda e características de gênero de adultos, como seios (lembrando que nenhuma boneca da Antiguidade em forma de bebê foi encontrada até hoje).

A maioria dos exemplos que sobreviveram era de terracota, na Grécia, ou de osso ou marfim, em Roma – com um exemplo surpreendente feito de âmbar!

Na Grécia, as bonecas de terracota eram tão populares que chegaram a ser produzidas em massa, usando moldes. Já em Roma, as bonecas eram produzidas por centros de fabricação especializados em objetos feitos de osso e marfim.

Mas isso não quer dizer que eram as mesmas bonecas que a filha de Plutarco teria usado para brincar, segundo Dasen, que planeja uma exposição de bonecas no Museu de Yverdon, na Suíça, em 2024.

“Nós consideramos que, se parece com a Barbie, é uma Barbie. Mas não é”, afirma ela.

Como a maior parte das bonecas gregas descobertas é de terracota, elas são delicadas demais para suportar brincadeiras brutas e quedas. E muitos dos moldes de fabricação foram encontrados em santuários religiosos, o que indica uma função mais sagrada.

Muitos pesquisadores concordam hoje que essas bonecas eram usadas para funções cerimoniais específicas. Elas eram dedicadas aos santuários de deusas protetoras das meninas e das mulheres adultas, como Ártemis, Deméter e Perséfone, como parte do rito de passagem antes do casamento ou durante a cerimônia nupcial, por exemplo.

Dasen destaca que korê — o outro nome de Perséfone — significa “boneca” ou “menina solteira”, em grego clássico. Novamente, a mesma boneca pode ter sido usada de duas formas.

“Temos a tendência de separar o sacro do normal, mas não era assim naquela época”, afirma Sommer. “Tudo era integrado. Não havia segregação entre esses dois mundos.”

Mesmo nos tempos atuais, algumas culturas mantêm uma sobreposição similar. Antropólogos observaram, por exemplo, que as crianças andinas muitas vezes fazem casas em miniatura e brincam com elas. Depois, as casas são oferecidas aos deuses nos templos.

Como os arqueólogos e historiadores formam ideias reais sobre quais eram os brinquedos das crianças?

Em alguns casos, existem registros escritos. Uma mulher de nome Diogenis escreveu para seu irmão, 1.700 anos atrás, em Oxirrinco, no Egito: “muitas lembranças ao pequeno Téo. A mulher que você me indicou que fosse visitar trouxe oito brinquedos para ele e os enviei para você.”

Existem também relatos escritos sobre Agesilau 2°, que foi rei de Esparta, na Grécia, 2.400 anos atrás. Segundo esses relatos, o rei gostava de montar com seu filho em um cavalo feito de gravetos. Já o primeiro imperador romano, Otávio Augusto, jogava bolinhas de gude com as crianças.

E existem também evidências iconográficas — ilustrações em vasos, túmulos e esculturas em relevo, por exemplo. Sommer indica uma estela da Grécia Antiga que ilustra uma criança sentada, brincando com uma bola. “De forma que não há espaço para discussão, certo? Esta bola realmente é um objeto para brincar.”

E ela mostra outra imagem. “Veja este menino. Ele está brincando com um chocalho. E nós encontramos chocalhos idênticos em registros arqueológicos.”

Os chocalhos eram tão populares na Grécia Antiga que chegou a haver um centro de fabricação na ilha de Chipre. Esta descoberta destaca a importância de outro indício empregado pelos arqueólogos — o mesmo usado por Van Beek ao interpretar seus buzzes: os objetos usados como brinquedos pelas crianças hoje em dia.

Um antropólogo sociocultural encontrou, por exemplo, dezenas de paralelos entre os brinquedos das crianças da África contemporânea e os encontrados na Grécia e Roma Antiga.

Se considerarmos que as crianças de hoje são como as de 3 mil anos atrás, esses paralelos podem lançar um pouco de luz sobre alguns mistérios da arqueologia, como os animais de terracota em miniatura encontrados em túmulos infantis na Grécia e Roma Antiga. Eles, muitas vezes, são interpretados como sendo simbólicos. Mas, no norte da África, as crianças fazem seus próprios animais de brinquedo em miniatura com argila e brincam jogos de faz de conta com eles.

Dasen aconselha a ter cuidado para evitar o uso excessivo desta abordagem. Em um estudo, ela faz referência a um objeto da Grécia Antiga que, em todo o mundo, parece um ioiô moderno. Ele aparece em vasos, sendo balançado no ar por crianças. Objetos idênticos foram encontrados em escavações arqueológicas.

Mas os objetos encontrados são feitos de terracota, que é frágil, e são frequentemente decorados com motivos de sedução. Eles podem não ter sido ioiôs, mas sim um iynx — um disco que era girado para tentar atrair a sorte no amor.

Os próprios chocalhos já foram contestados. E eles foram encontrados em todo o mundo.

Na Sibéria, o brinquedo de argila com 4 mil anos de idade tem a forma de uma cabeça de filhote de urso. Na Turquia, sua decoração em preto e branco é similar aos esquemas de cores contrastantes que usamos para os bebês hoje em dia.

Na Grécia Antiga, chocalhos de bronze foram encontrados em túmulos de bebês de famílias mais ricas. Alguns deles eram grandes demais e feitos de material muito frágil para serem usados por crianças pequenas.

“Mas observe todos esses pedaços de chocalhos quebrados em que ninguém prestou atenção. Eles estão nas casas, nas ruas, em lugares onde você encontraria crianças”, afirma Kristine Garroway, professora especializada em crianças na antiga Israel e Mesopotâmia do Hebrew Union College de Los Angeles, nos Estados Unidos.

“Por isso, talvez haja um contexto mais amplo que foi menosprezado, simplesmente porque as crianças são menosprezadas. E talvez os adultos ou crianças mais velhas agitassem um chocalho para manter as crianças em silêncio”, explica ela.

No passado, a única forma de imaginar se um objeto foi elaborado por uma criança era avaliar as imperfeições da sua criação. Mas hoje temos métodos mais científicos.

Muitas vezes, os acadêmicos interpretaram navios em miniatura como sendo objetos usados em oferendas. Mas, no sítio arqueológico Tel Nagila, em Israel, datado de 3.500 anos atrás, pesquisadores analisaram impressões digitais para determinar que muitos deles foram feitos por crianças.

Se as brincadeiras eram (e ainda são) inerentemente educativas — um “meio de desenvolver técnicas de vida”, como diz Garroway, e uma forma de fomentar “o desenvolvimento da criança à medida que ela cresce para o mundo adulto” — essas embarcações eram o produto das brincadeiras.

Ao discutir miniaturas de enxadas, potes e pontas de flecha que foram encontradas em sítios arqueológicos da Idade do Bronze e do Ferro na Dinamarca, Grete Lillehammer chegou a uma conclusão parecida — que os objetos provavelmente serviam para brincar e para educar. Já pequenas pontas de flecha encontradas em um túmulo infantil do período mesolítico em Stateholm, na Suécia, podem ter sido usadas para treinar as crianças.

E pesquisas mais recentes incluíram instrumentos para disparar lanças com 1.700 anos de idade, com tamanho dimensionado para crianças. Eles foram encontrados onde hoje fica o Estado de Oregon, nos Estados Unidos, e seus estudos chegaram a conclusões similares.

Outra forma de descobrir se uma criança poderia ter feito um objeto é criar um experimento. Trinta anos depois da tentativa de Van Beek de produzir um buzz, Kristine Garroway adotou uma abordagem diferente.

Talvez os buzzes não fossem apenas brinquedos de crianças, mas também tenham sido feitos por elas — um processo que servia de brincadeira e era uma forma de fazer com que as crianças aprendessem técnicas importantes de produção de objetos.

Para testar sua hipótese, Garroway recrutou 22 crianças para quebrar cerâmica e tentar fazer seus próprios buzzes. E ela conta que o destaque foi uma criança que encontrou um pedaço de um vaso de flores que já tinha um orifício perfurado, inseriu um lápis no orifício e criou um disco giratório.

“Ele entendeu a tarefa de outra forma”, afirma Garroway, rindo. E, de fato, alguns arqueólogos acreditam que alguns discos encontrados com um único orifício, e não com dois, podem ter sido discos giratórios.

Os especialistas continuam solucionando aos poucos o mistério de como as crianças do passado brincavam, mas muitas questões ainda persistem. Existem quebra-cabeças que talvez nunca venhamos a solucionar, o que pode fazer com que a “piada dos arqueólogos” permaneça relevante nos próximos anos.

Mas Garroway indica que isso não acontece apenas com a arqueologia infantil.

“Da mesma forma que não sabemos ao certo sobre as crianças, também não sabemos ao certo como os adultos usavam as coisas”, afirma ela, ironicamente. “Nós adivinhamos educadamente – e muito.”

* Amanda Ruggeri é jornalista sênior da BBC Future. Sua conta no Twitter é @amanda_ruggeri.

Mosaico romano, encontrado no que hoje é a Tunísia, retrata menino pegando aves com corda. Foto GETTY IMAGES / BBC

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